segunda-feira, 27 de junho de 2016

Da violência simbólica: tarefas do lar

Precisamos estar atentos à violência simbólica, porque ela não mostra a cara. É aquele tipo de coisa que não percebemos, até que um dia nos damos conta de que já fomos atingidos por ela e estamos atolados, nela, até o pescoço.

A violência física é fácil de ser identificada.  Um tapa, um chute, uma cotovelada são vistos e sentidos claramente. O assédio moral e/ou psicológico, ou ainda o assédio sexual, pode não ser tão evidentes, mas há aí algo de visível que permite sua identificação. Já a violência simbólica é invisível, porque não está na ordem do feito/agido, do dito ou do mostrado, mas do sensível. Ela perpassa as violências física, moral, psicológica e sexual, ela é aquilo que marca a pessoa de forma definitiva, porque é uma marcação na alma.

O que é, então, violência simbólica?  A violência geralmente surge em meio a uma relação de dominação/dominado (e o mundo é estruturado nessa relação). Nela, nossos ‘corpos socializados’ não percebem aquilo que não é natural, mas que está naturalizado nas práticas sociais repetidas constantemente. Aprendemos que cuidados com casa e filhos é coisa de mulher e trabalhar em uma empresa é coisa de homem. Se bem que hoje existem muitos homens que cozinham... mas são chefs. Geralmente cozinham para receber amigos, ou agradar a esposa. A comida do dia a dia, o arroz com feijão diário, a alimentação da família ficam a cargo da mulher. A própria casa é dividida em cômodos e áreas definidos pelo gênero: garagem e escritório são lugares de homem; cozinha e área de serviço, de mulher. É claro que as coisas estão mudando, mas nem tanto, nem há tanto tempo. Isso é só para ficar num só exemplo. Ao se dedicar no cuidado da casa, dos filhos e do marido, a mulher acaba não usufruindo de muita coisa (porque fica extremamente ocupada com suas tarefas “do lar”), uma delas é a falta de uma remuneração por um trabalho qualificado e a liberdade de usar o seu dinheiro da forma que melhor lhe convier. Muitos dirão, ah, mas se a mulher é casada com um homem honesto, carinhoso, atencioso, que não lhe deixe faltar nada, que lhe dá toda a liberdade possível? Ao menos sua independência e liberdade estará subordinada aos desejos desse homem, mesmo que seja afetuoso e dê liberdade total à mulher (homens raríssimos, ou inexistentes)... Qualquer falta de independência afeta o ser humano de forma – pra mais ou pra menos – violenta, não uma violência visível, mas uma que nos impede de existirmos como qualquer outro ser humano que possa gozar plenamente de seus direitos. Isso é tão naturalizado que sequer percebemos o quanto a mulher é colocada num lugar de desprestígio. (*)
Vendedora de rosas,
escultura em papel de Nane Ferrari

Tive recentemente bom exemplo do papel subordinado da mulher. Uma amiga que foi criada para ser independente, sequer aprendeu a cozinhar, lavar roupa ou fazer faxina. Formada em Engenharia Química, já trabalhando numa multinacional da indústria farmacêutica, entrou no mestrado, onde conheceu o grande amor de sua vida. Ele, formado em Farmácia, também trabalhando numa empresa da indústria farmacêutica... mas nacional. Tal como ela, não era dotado das prendas do lar. Estavam, pois, em pé de igualdade de gênero... Tão grande foi o amor, que se casaram.  Inicialmente, comiam fora e contrataram uma diarista para cuidar da limpeza da casa... Lavar roupas, era fácil, bastava colocar na máquina e depois pendurar. Mas, mesmo assim, com as despesas caras e planos de viagem e filhos, decidiram restringir os gastos. Adivinha quem aprendeu a cozinhar? Adivinha quem passou a chegar em casa e fazer uma faxina rápida, que depois foi se tornando obrigação? Acertou quem disse: ela! Embora ajude a colocar as roupas no varal,  ele sequer coloca as cuecas na máquina de lavar. Por que será? E olha que estamos em 2016...

(*) Todo o parágrafo foi inspirado em:
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

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