quinta-feira, 9 de junho de 2016

Dica de leitura: Contos de Amor Rasgados

capa do livro
O texto que me serviu de estímulo para questionar a posição do homem na pós feminismo foi o Contos de Amor Rasgados, da Marina Colasanti. Fiquei impressionado com a forma como a autora construía, na década de 80 (o livro foi publicado em 1986), a imagem da mulher. Tendo participado da constituinte que culminou com as mudanças na Constituição de 1988, em que muitas reivindicações do movimento feminista foram incorporadas, tendo escrito coluna diária de resposta às cartas de leitoras em jornal de grande circulação, Marina Colasanti publica um livro de contos que contrariaria os ideais feministas.

À época, era de se esperar que se construísse uma imagem de mulher independente financeiramente, trabalhadora, com boa autoestima e autossuficiente, pois essa representação de mulher ainda não existia. Mas os contos refletiam outra realidade. Em vez de imagem positiva, as mulheres foram narradas de forma submissa, sempre cedendo aos maridos/namorados/amantes. Embora haja poucas exceções, a maioria dos contos tematiza casal em relacionamento conturbado, que não deu certo. Pelo título, já desconfiamos do estratagema quando a autora mescla duas expressões – contos de amor e amor rasgado (gíria da época que significava viver amor intenso com total entrega) – em uma expressão reveladora de que são os contos, que são de amor, é que são rasgados, não o amor.

O livro foi como um soco na boca do meu estômago, de forma tão profunda que serviu de corpus para minha pesquisa de mestrado. Acho que todo homem deveria ler. Se você ainda não leu, não deixe de ler; ele é, ao menos, impactante. Os contos são míni, muitos não chegam a preencher uma página, o que facilita a leitura rápida que nos é exigida nos dias de hoje. Deixo aqui uma amostra para degustação:
Para que ninguém a quisesse

        Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar. Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas de seda, das gavetas tirou todas as jóias. E vendo que, ainda assim, um ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos.
        Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem nenhum se interessava por ela. Esquiva como um gato, não mais atravessava praças. E evitava sair.
        Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo que fluísse em silêncio pelos cômodos, mimetizada com os móveis e as sombras.
        Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera por ela.
        Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite, tirou do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.
        Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar. Largou o tecido numa gaveta, esqueceu o batom. E continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a cômoda.

In: COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados.
Rio de Janeiro: Rocco, 1986, pág. 111-112.

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